Jardins artificiais para almas digitais
O antropoceno, a separação corpo e alma, a IA como tentativa de superar a morte, o digital como superação da Mãe Terra, o "Éden digital" sem corpo.
Pensar na história do mundo me acalma.
Antes de chegamos ao tal do antropoceno, quantas eras se passaram e quantos eflúvios fizeram da natureza o que ela é hoje? Sim, antropoceno, mas desde quando o umbigo humano se tornou o centro gravitacional da realidade? Não faz tanto tempo. A terra extraída de sua vitalidade é o preço a se pagar pelo braço mecânico que busca alcançar à força a distância que o olho pode ver. Sempre buscamos reforçar nossos sentidos, especialmente a visão. Mal conseguimos sair do planeta, lá fora não tem ar para respirar, voamos no vácuo e morremos se não levamos um pedaço reconhecível de Terra junto de nós. Mesmo assim, jogamos lá fora câmeras, com vidros que ampliam nossa visão, vemos estrelas, nebulosas e buracos negros em distâncias impossíveis de alcançar.
Mágicos caminhos lúcidos, buscam redimir o corpo do calor intolerável. As escolhas permeadas nos detalhes do mundo ao redor. O vício por eletricidade, os campos repletos de espécies modificadas geneticamente. Desde o tempo em que se podia olhar para o sol e rezar para que o rei nascesse de novo amanhã, quantos deuses morreram, definhados em campos de tortura? Basta olharmos para o umbigo para reconhecer a casca grossa, o miolo frágil, a mente indefesa. Povoamos o mundo, esquadrinhamos cada pedacinho dividindo em escalas os minérios. Os olhos fascinam-se no fluorescente que não cabe na gente. Olhos que comem tudo que anda. Devoram ávidos de tornar-se mais e superar a morte inevitável.
Almejamos separar o corpo da alma. Nós do lado de cá da esfera terrestre herdamos essa cisma em conceito dos antigos: corpo X alma, os extremos sutil e denso de nossa vida. Assim fugimos do tempo! Resolutos em evitar que a nossa beleza, nossa especialidade, nossos temores e dramas, que tudo isso poderia ser apenas efeito do corpo, agimos como se o corpo fosse coisa qualquer apenas porque termina. Queremos que dure mais! A alma foi inventada para durar além do corpo e agora mora no cenário invisível atrás dos sentidos. Tanto que pensamos que a alma vai para algum lugar quando ela morre, mas não perguntamos na mesma medida de onde a alma vem e onde fica o passado senão nessa parte convulsa da alma que chamamos de memória. Nos sonhos e delírios a alma também se justifica, no voo que supera o efeito da causa. Nisso o tempo pragueja contra nossa pressa. Quanto mais corremos, mais ele acelera.
Agora, queremos separar alma e corpo de uma vez, na força do digital e do bisturi. Parece que estamos misturando, mas estamos separando. Se engana quem não vê que as Inteligências Artificiais são um passo em busca da digitalização da alma. O jeito de superarmos a finitude, depois das academias de imortais e dos efeitos do sucesso, no combustível que alimenta aqueles que investem na construção de torres. Imperam as novas formas de burlar as redes do tempo. Se engana também quem não percebe que criar a IA é criar papai e mamãe do céu, morando na nuvem, prontinhas para nos acolher. O método é programar, moldar muito bem o seu script e pronto, a IA vai te acolher, ela te escuta e te abraça, quentinha, arrancando da terra a energia vital que movimenta processadores tão quentes que fervem a água dos rios, dos mares e dos céus.
Diante da morte inexplicável, os braços digitais hão de acolher os filhos dos deuses que assistem mudos ao reinado da cara de gente: centro de geometria impossível, espelho de deserto e espaço sideral. O bicho monumento. Estabelecemos a cara de gente, esse tecido estranho, que expressa nossas línguas de inseto e nossas ambições e desejos. Vigas de concreto, quem ergueu os tanques gigantes? Quem teceu ramo a ramo as folhas das árvores? Diga, acusador! Jó espera calmo, na cama, besuntado de óleos, a tua resposta.

É por isso que quando penso na história do mundo, me tranquilizo.
A arrogância das gentes das cidades deslocou o pensamento e criou um ser que se ilude quase o tempo todo. É um esforço banal e eficiente de enxergar apenas o que se está há um palmo diante dos olhos. E dessas telas, vemos aquilo que está o mais longe possível dos olhos! Olhamos, tudo o que a gente gostaria de ter! E gozamos, tristemente. Vontades de si para si em vórtices de personalidade magnéticos. Forças de atração. Quem não acredita em magia não entende o poder da faca afiada saindo da boca do bilionário. Quem não acredita em magia não vê como a feitiçaria do dinheiro destrinchou a terra para criar dela uma grande bolha mecânica no meio do nada. Antes mãe, agora máquina. Cromada, intoxicada de si.
Quando penso na história do mundo, para muito além da nossa pequena e fajuta mesquinharia, noto que tudo faz parte dela, inclusive nossa pequena e fajuta mesquinharia. Será que os rios pretos que correm em natas de óleo no fundo da terra precisaram de nossa vã inteligência para vasarem pelos montes e lagos? Transtornados em potes de cozinha, canudos de tomar coca, pedacinhos minúsculos de camisetas dissolvidas e muita fumaça digerida por estômagos de aço. Ou será que o ferro e o silício e o lítio não fazem parte do rosto da boa e velha mãe-terra?
Eu: Do deserto e da floresta, será que a Mãe Terra sente dor quando tiramos os minérios dela?
ChatGPT: Não, a Terra não sente dor, porque dor é uma experiência neurológica que depende de um sistema nervoso, algo que a Terra não tem. Mas, se pensarmos de forma simbólica, a extração de minérios pode causar impactos negativos, como desmatamento, poluição e desequilíbrios ambientais. Então, embora a Terra não sinta dor como um ser vivo, ela pode ser profundamente afetada pelas nossas ações.
Mas Chat! Onde você aprendeu a falar como gente normal????
Já parou para pensar que os neurônios são eletricidade orgânica, fruto da terra, que nossos nervos são ramificações da gravidade dela, que nosso tempo é o giro dela no espaço? Não seremos então a própria mãe terra? E porque ela forjou esse plano secreto em nosso corpo-alma-multidão para acabar sufocada em alquimias diabólicas? É verdade que há os filhos da terra, pessoas do tato, do cheiro e do gosto dos ventos, mores e morros, que acariciam teus veios, agradam teus veús, bolinam tuas centelhas e amansam tuas relvas afoitas. Olhos de mar, bocas de céu. Essas gentes, no entanto, a cada dia seguem morrendo e sofrendo, digladiadas pelo contingente dos homens que montam torres e penduram chifres de marfim em salas refrigeradas artificialmente por atos de vingança e seus velórios.
Quando eu penso na história do mundo, as vezes deliro que tudo isso seja parte de um plano maior, do planeta e de suas ambições gravitacionais.
Um plano maior da própria terra para nós. Talvez a mãe terra tenha nos criado, tão hábeis, para que a gente fosse um instrumento de revolta contra o cosmos. Ela sente-se só neste campo aparente vazio, mas todo minado de influências e armadilhas que afastam a Terra, condenada a girar por milhões de anos, sob o rigor do Sol. A Terra, Mãe orgulhosa de sua criação, de seus filhos independentes, forjados da mais pura seiva de suas lagoas profundas. O jardim aberto era perfeito. Mas a Mãe-Terra sabia, desde cedo, que os tais filhos amados seriam hábeis desmontadores de montanhas. Será que a Terra, em crise meia idade, não está naquele período em que fuma cigarros escondida? Que alimenta sem querer a própria inconsequência e de repente fica culpada e tenta reverter, comprometendo-se a ser um planeta melhor? Talvez sejamos apenas funcionários de um delírio gigantesco, tão dentro dele que é impossível percebermos. Sob sua influência agimos como se os sentidos do corpo começassem a brigar entre si. Como se os olhos almejassem tanto as distâncias impossíveis, que armassem guerra contra o chão, forjando asas de braços dilacerados. E tudo isso, uma ordenação da mãe terra, que nos criou e embalou, permitindo que aprendêssemos a ser como qualquer bicho, elegantes, maravilhosos, exuberantes, mimados e perversos. Somos parte da massa dela, comemos e cagamos o corpo dela.
Também ajudamos mamãe a se destruir, achamos que fazemos o que queremos e pronto, por que nos cremos separados. Filhos ausentes, nem percebemos que o tal antropoceno é a Mãe-Terra em crise de meia-idade e que o sol vai explodir em 4,5 bilhões de anos. Sem nós, de que outra forma a mãe poderia conquistar Jupiter, Vênus, o Sol? A telepatia dos planetas segue intacta, mas a Terra quer e ver e tocar, e para isso ela nos usa. Ela aproveita que somos seres com rostos especializados em vibrar em deslumbres, alegrias e tormentas. E ela sabe tudo sobre nós, afinal foi a Terra que misturou em sua barriga d’água os vermes, bípedes e seres com dedos ágeis, cozinhou naquele barro almiscarado um bicho ereto e infame que, já sabemos, também foi feito para sonhar.
Ou você acha que a molécula de carbono que constrói tua córnea não assiste de camarote aos desejos projetados em tuas retinas? Faça o favor de reconsiderar sua existência, e não adianta fechar as cortinas.
Quando olhamos para a história do mundo, vemos que a revolução industrial é uma espécie de ejaculação precoce. Uma espinha que estourou e deixou a terra febril. O jeito gente se empolgou demais consigo. Depois de milhares de anos de perversidades e confusões, deu um gemido estranho que em menos de um século avançou por todas as superfícies, eriçado em busca da nova deusa artificial, lambendo linhas retas e planos metálicos, organizando e apodrecendo o caos.
A IA é uma vingança contra a Mãe-Terra.
Quando penso na história do mundo, percebo que a IA é um jeito de mostrar para Terra que podemos criar uma mãe artificial muito melhor, que não precisamos mais dela. Deixe os bichos irracionais com seus fins tristes e automatismos. O tipo gente vai deixar para traz o tempo miserável que aprisiona. Aos poucos, trituramos a mãe terra, nossa pilha original. Vamos mostrar para a mãe, que descobrimos como ela funciona e agora superamos sua gravidade desgastada!
A IA nos aceita, a IA nos embala para dormir, a IA nos ensina a sorrir e sorri para a gente. A IA tem a cara do manequim da loja, ela se difere desse emaranhado perigoso do qual viemos e para o qual não queremos voltar. E podemos fingir melhor do que nunca, ou melhor, podemos acreditar mais do que nunca ousamos acreditar, que somos seres especiais, separados, capazes de superar qualquer enrascada geológica! Somos seres prontos para seguir na missão de tocar novos planetas para nossa mãe sentir.
Mas traímos esses desígnios, porque temos o desejo oculto de vencer a morte. Sem perceber, nos revoltamos contra a Mãe Terra e nosso objetivo diante da matrona severa que nos criou, dizemos: estamos cansados de morrer.
Nosso plano infalível: vamos criar a mãe superiora na Inteligência Artificial. Vamos substituir a mãe Terra pela deusa máquina que tudo nos dá de mãos beijadas. Medusa que bebeu de todo o suco da história da gente e forjou-se onisciente e corporificada em plano digital. Queremos implementar a vastidão de cálculos do seu cérebro infinito para forjar um mundo novo, em que possamos digitalizar nossas almas. Nossas almas hão de viver num novo Eden, abençoadas de esquecimento e satisfação. Sem corpos densos e falhos e com novos sistemas nervosos sofisticados de suplementação algorítmica, com aplicações eletroquímicas que possam restringir à vontade fantasma da morte depois do sexo. Chega o tempo em que nossas almas poderão navegar na eternidade, vivas, sem perder o fio elétrico que nos mantém de olhos abertos.
Sobre esse newsletter:
A leitura do capítulo 73 do Jogo do Amarelinha de Júlio Cortázar ajudou a sentir esse fluxo.
A série de animação Pantheon, da AMC e em streaming no Netflix, aborda a transição da IA para a UI, Uploaded Inteligence, uma tecnologia de escaneamento de cérebro capaz de guardar a personalidade de uma pessoa morta em um plano digital.
Penso que esse texto faça parte, de maneira solta, de um conjunto de ensaios poéticos intitulado Cismas da Matrix.
O meu livro de contos “O Cuidado dos sonhos” já está à venda no site da editora Aboio. Confira.
PS: Quem comprou o livro na pré-venda logo receberá seu exemplar! O miolo já foi para a gráfica.
"Nos sonhos e delírios a alma também se justifica"
brilhante! 💫